11 de outubro de 2018

O quarto de Giovanni, de James Baldwin


♥️
Olá!

Uma das características do livro sobre o qual você lerá hoje é a fluidez da narrativa. E para além disso, o tom poético e a dureza das palavras e a transparência de um sentimento que ora é conforto, ora é agonia. 'O quarto de Giovanne' é o primeiro livro dos vários títulos do autor que serão relançados pela Companhia das Letras.


A história é ambientada na boêmia Paris da década de 1950 e nos conta sobre David, um americano de família rica e Giovanni, jovem italiano que trabalha num bar da  cidade. David decide sair de Nova York para passar um tempo na capital francesa enquanto espera sua namorada, Hella, que finalmente virá da Espanha para trazer a resposta ao pedido de casamento do rapaz. É durante esse período na capital que David conhece Giovanni de modo inesperado enquanto bebe num badalado bar. E é entre conversas e desafios, papos sobre as estranhezas e a cultura e comportamento de cada um que eles se envolverão sentimentalmente e isso vai pôr em xeque as convicções e os planos de David.

Desde "Me Chame pelo seu nome", lido no início do ano, nenhum outro livro me tocou, me afligiu e me trouxe sensações de familiaridade e estranheza tão forte como aconteceu com "O Quarto de Giovanni", de Baldwin. Foi uma experiência única fazer essa leitura, pois além de me sentir envolvido numa narrativa poética e fluída, pude ter contato com as particularidades da sociedade parisiense de 1950. A mistura do forte drama com as características dos complexos personagens e do olhar da sociedade daquele período tornou a leitura mais interessante, real e muitas vezes chocante. É engraçado olhar para trás e perceber que os preconceitos da sociedade, ainda que disfarçados, permanecem vivos ao nosso redor ditando modos de viver, agir e se comportar no meio onde vivemos. Talvez esse sentimento de familiaridade que a leitura nos causa venha do relato de que a história em questão parte de relatos da vivência pessoal e da observação do autor.
"Parte da atmosfera de ' O quarto de Giovanni' proveio da observação atenta e da experiência pessoal, como o autor deixou bem claro numa entrevista realizada em 1980. Ele conta de que momento utilizou algumas pessoas que conheceu..."
Essa é uma das narrativas em primeira pessoa mais competentes que já li. Da noite iluminada e dos lugares caóticos de Paris aos sentimentos mais íntimos e incômodos, Baldwin nos coloca na presença desses lugares e nos faz sentir de maneira intensa traçando imagens simples, mas fortes e precisas do que está acontecendo na história. De repente passamos de meros expectadores da vida desses dois homens e somos colocados no lugar deles com todas as expectativas, anseios, medos. A realidade também é nossa até que a narrativa nos conceda a vez e então passamos ter a nossa percepção de mundo: a do tempo atual e do agora. E não importa em que lugar do mundo você esteja. Haverá sempre uma estranheza ou uma perspectiva sobre o assunto abordado no texto.

E o que a gente encontra aqui é o retrato da sociedade de Paris e as mentes escandalosas das pessoas que se escondem, que buscam viver aventuras e ser quem são nos bairros boêmios da cidade. O racismo e o machismo, além do preconceito, são temas marcantes em "O Quarto de Giovanni". A questão da homossexualidade está aberta e todos os olhares perversos que os próprios personagens tem para si também. Tanto que o próprio autor também revela que esse livro é menos sobre homossexualidade do que sobre o que acontece quando você tem tanto medo que acaba não conseguindo amar ninguém. A crítica social aos costumes e aos comportamentos dos homens se assume em comentários ácidos feitos pelo personagem principal e nos revela o quanto o personagem é, além de assustado, dominado por esses olhares que o faz sentir medo e receio de ser quem realmente é.
"Estavam lá os cavalheiros de sempre, barrigudos, de óculos, de olhar ávido, por vezes desesperado, e também os rapazes de sempre, esguios como facas, com calça justas. Nunca se sabiam direito, a respeito desses rapazes, se estavam atrás de dinheiro, sangue ou amor. Zanzavam de um lado para o outro sem parar, filando cigarros e bebidas, com alguma coisa atrás dos olhos ao mesmo tempo muitíssimo vulnerável e duríssima."
O forte sentimento que os rapazes nutrem um pelo outro passa a ser motivo de desespero para os dois. Enquanto um se desespera amando quem no fundo sabe que pode e vai perder a qualquer momento, o outro se vê dividido entre o sentimento que parece existir agora mas que pode dissipar no momento seguinte. Há uma luta interna muito grande por parte de David, que também espera pela namorada, que poderá tornar-se esposa, ao mesmo tempo em que não consegue deixar Govanni. Esse que por sua vez parece enlouquecer com a verdade - e de paixão - e tenta fechar os olhos para ela e aproveitar ao máximo o agora. Giovanni, é um rapaz solitário, e embora muito requisitado e bonito, parece sempre perdido e com a sensação de perda. Talvez um acontecimento do seu passado tenha lhe rendido temores e sentimentos confusos, que até certo ponto o rapaz parece saber administrar. Até que finalmente se depara com a realidade da qual temia desde o início - que talvez fosse ficar sem David ou simplesmente ficar sozinho - e então finalmente a máscara do menino forte cai e Giovanni revela seu quarto escuro e menino interior assustado. O quarto que o título se refere pode muito bem ser uma metáfora da vida e dos sentimentos de Giovanni.

Esse menino assustado, que também é David se apega às suas mentiras e prefere manter-se confortável numa relação normal, com uma vida normal, ao lado da mulher que escolheu viver. Aquela que também viveria uma vida normal ao lado dele. O machismo e o preconceito tão impregnado no personagem, acaba por deixar o relacionamento fadado ao desastre: será que ele conseguirá fingir ser quem não é durante tanto tempo? Esse questionamento que me fiz me remete ao mesmo questionamento que fiz quando assisti ao filme "Segredos de Brookback Mountain", quando os dois personagens viveram um relacionamento escondido de suas esposas.

Tão antigo quanto atual, "O Quarto de Giovanni" traz à tona a complexidade dos sentimentos humanos, mas principalmente o quanto a sociedade e as construções sociais ditas as regras e ganham o domínio de uma pessoa. Uma história sobre ter medo de sentir, sobre o medo de ser quem realmente é, sobre como o olhar do ser humano e o seu olhar para você mesmo pode ser perverso e injusto.

Bjão, ♥️
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