Olá, ♥ pessoal!
Eu estava
com saudade de publicar um texto autoral aqui no blog, mas tenho tido pouco
tempo para me perder nos meus devaneios. Sendo assim, decidi postar um conto
que escrevi lá em 2012, por um motivo que me encheu de felicidade essa semana:
eu reencontrei a mulher que me inspirou a escrever esse conto, depois de quatro
anos, estudando na mesma faculdade que eu. Foi uma surpresa e me deixou muito emocionado,
visto que me lembrou do momento em que a vi pela primeira vez e da maneira como
isso aconteceu.
Espero
que recebam esse texto com carinho.
- ♥ O Recitar
Num pedaço de espelho
quebrado ela se olha e começa a pintar o rosto de branco. Abaixada num canto da
rua, enquanto pessoas caminham apressadas sem perceber o mundo ao redor, a
garota com seus olhos expressivos e corpo magro pinta a face com uma tinta branca
que lhe encobre todo o rosto, sem deixar à mostra a cor natural de sua pele. No
passeio onde lhe serviu de moradia por alguns minutos havia também sua melhor
roupa (ainda que no pano pudesse ser visto um furo nada discreto): um macacão
preto que não lhe cobria as pernas por inteiro, um chapéu também preto no
estilo Charlie Chaplin e um tênis All Star. A bolsa que carrega seus
pertences, até então pesada, agora está vazia e firme em uma de suas mãos. Ela
está pronta para mais um dia.
Com uma das mãos vazias
ela pede a parada de um ônibus que vem passando numa velocidade razoável porque
parece que alguém chegou ao seu destino. Uma senhora de cabelos grisalhos desce
devagar com a ajuda de um rapaz, agradece ao motorista e desaparece no meio das
pessoas que transitam pela cidade.
Ninguém sabe para onde ela foi, mas agora é hora de mais um passageiro
entrar no coletivo, que não oferece lugar para se sentar, mas conta com espaço
suficiente para que qualquer um possa transitar pelo espaço vazio. Quando entra
no ônibus, já vestida com seu personagem, cumprimenta os passageiros com um bom
dia feliz e espontâneo, e começa a recitar.
Do barulho percebe-se o silêncio das vozes que
se calam para prestar atenção na garota animada que espalha encanto pelos
espaços abertos do ônibus. É como uma canção para os ouvidos e um carinho para
a alma de quem acorda cedo para viver um dia de trabalho estressante.
- “Que garota talentosa!” – as pessoas ao redor comentam
impressionadas, encantadas. Olhares atentos à espera de um pouco mais do
talento admirável que explora o ambiente com propriedade, e possui um tom de
voz altivo, capaz de intimidar e ganhar a atenção de qualquer um. Uma cidadã
pobre de bens matérias, mas rica de palavras, expressões e gestos que se
misturam com seu discurso poético.
Carlos Drummond de
Andrade, Manuel Bandeira, Olavo Billac, Vinicius de Moraes. Todos esses poetas
fazem parte do repertório de poesias recitadas por ela durante a viagem
continua. O sertão, a fome, o preconceito e a falta de oportunidade estavam
ali, pairando no ar do mundo injusto, da sociedade hipócrita, do discurso
moralista, do desamor. Ecoam da voz emocionada e cada vez mais empolgada e
enfática da mulher, enquanto ela é tomada por uma emoção que contagia cada um
dos passageiros – os que escutavam música e desligaram o som para ouvi-la
falar, os que liam algum livro, os que dormiam até. A cada intervalo de uma
poesia a outra o público não recolhe aplausos, batem palmas com vontade,
enchendo o peito da atriz de satisfação, enquanto ela agradece com os olhos
brilhando, como se fosse capaz de entender a Via Láctea, como se pudesse ouvir,
conversar, entender estrelas.
Agora é hora de passar o
chapéu de mão em mão, às pessoas que estão sentadas. O que ela é? Garota,
menina, mulher? Será que é tudo isso? Não se sabe de nada além de que ela veio
do Ceará tentar a sorte num lugar desconhecido e desta forma está colhendo o
fruto do seu trabalho. O barulho das moedas representam contentamento,
prazer e admiração do público que não hesita em contribuir. Dez, cinco, vinte e
cinco centavos, um real. Às vezes, talvez, nada de dinheiro, mas uma palavra de
carinho daqui, um gesto, um incentivo de lá.
Agora ela agradece. As
cortinas precisam se fechar, embora talvez, no fundo saibamos que o show deve –
e irá – continuar em algum lugar ali fora, em alguma outra lotação da vida. A
porta da frente do ônibus se abre e ela desce no ponto. Vai seguir seu caminho
com a riqueza que possui, com as moedas que conseguiu, com a esperança que não
há de morrer. Vai embora com a maior riqueza que se pode ter: aquela que está
guardada na alma. E daqui vou seguindo meu caminho para a vida que me espera,
nos pontos onde preciso parar, esperando ansioso por ela para mais um recitar.
Diego França ©2012/ 2016